Aqui, ela descreve uma roda da capoeira que viu na rua com sua grande amigo (e amante!) o antropologo e intellectual, Edison Carneiro:
Chegarámos ao lugar onde os homens se preparavam para a capoeira. Os espectadores se apinhavam à volta de uma grande roda e não havia nem mulher nem sacerdote entre eles. Num ponto do interior da roda estavam três negros altos, cada qual segurando um berimbau, com uma das extremidades apoiada no chão. Logo surgiram outros instrumentistas – um com um chocalho, outro com um pandeiro. Édison e os outros me ajudaram a chegar à frente e ficamos contentes por mudar o assunto.
Dois capoeiras estavam agachados diante dos músicos. Um era o campeão Querido-de-Deus, cujo nome de batismo era Samuel. Era alto, mulato, de meia-idade, musculoso, pescador de profissão. O seu adversário era Onça Preta, mais moço, mais baixo, mais gordo. Estavam ambos decalçalso, usavam camisas-de-meia listadas, um de calça branca, outro de calça escura, um de chapeu de feltro, outro com um bone que depois trocou por um palheta. Agachados, de chapeu e descalços, tinham um dos braços apoiado nas coxas e olhavam diretamente para a frente, descansando. Eram obrigados a guarder siléncio e a obrigação estendia-se à assistência.
A orquestra deu início à diversão, numa desafinada invocação; e esse fundo musical monótono, também, era essencial à ocasião. Era uma espécie de lamentosa tessitura anasalada, dentro da qua los homens realizavam maravilhas acrobáticas, sempre dentro da batida correta, enquanto a bacteria cantava versos zombeteiros:
Tava no pé da Cruz
Fazendo minha oração
Quando chega Catarino
Feito a pintura do Cão
E ê, Aruandê!
Iaiá, vamos embora!
Iaiá, pelo mar afora!
É faca de ponto!
Iaiá, é de furá!
Iaiá, joga pra cá!
Iaiá, joga pra lá!
Ê ê, viva meu mestre!
Iaiá que me ensinou
Ioiô, a malandrage
Iaiá, a capoeirage!
Iaiá, vorta do mundo
Ioiô que o mundo dá!
Era uma canção de desafio, esperança e resignação, com fragmentos de idéias de rebeldia. Não possuía um tema único, bem trabalhado, mas resumia um tipo de vida e de protesto. E fazia começar a luta.
Querido-de-Deus balançava os quadric enquanto encarava os adversário, mostrando-lhe os dentes; e avaliava as suas possibilidades. A luta envolvia todas as partes do corp, exceto as mãos, precaução exigida pela polícia para evitar danos. À medida que os movimentos se amoldavam à música, eles se movimentavam numa sequência lenta, como de sonho, que mais parecia uma dança do que uma luta. Como o regulamento estipulava que os capoeiras não deviam machucar-se uns aos outros, os golpes tornavam-se posturas acrobáticas, de valor para o cômputo final, com nomes classificação. Havia vários tipos de capoeira, com sutilezas na forma e na sequência dos golpes, e no modo de tocar os berimbaus.
Querido era prodigiosamente ágil nos difíceis encontros formais com o adversário e sorria constantemente, enquanto as canções rituais rolavam:
Disseram à minha mulher
Que capoeira me venceu.
A mulher jurou pé firme
Como isso não se deu.
E os berimbaus mudaram de toada mais uma vez:
Era eu, era meu mano,
Era meu mano mais eu.
Meu mano alugou uma casa…
Nem ele pagava, nem eu.
Impertinentemente, com movimentos bonitos, vagarosos e calculados. Querido deu uma leve cabeçada, sem tirar o chapéu da cabeçada, na boca do estômago do adversário, derrubando-o, de modo que ele caiu de cabeça. Então a orquestra estrugiu triufante:
Zum-zum-zum
Capoeira mata um!
Tiririca é faca de cortá.
Prepar’a barriga pr’apanhá!
Silenciados os ecos de desafio, terminada a rodada, os dois homens andavam e corriam sem descanso em sentido contrário aos ponteiros do relógio, um atrás do outro, o campeão à frente com os braços levantados, Onça Preta segurando-lhe os pulsos por trás, enquanto a orquestra cantava e tocava, enfadonha:
No tempo qu’eu tinha meu dinheiro,
Camarada me chamava de parente
Quando meu dinheiro se acabou
Camarada me chamou de valente.
Aos poucos, repousados, o da frente girava para encarar o de trás e os dois se evitavam ao compass das cantigas, sem jamais parar, balançando-se de um pé para o outro, à espera de golpes.
Capoeira vai te bate
Camarada, bota sentido!
Advertiam os berimbaus. Os dois se defrontaram, Querido avançando, Onça reta se esquivando, sempre no ritmo. Como Querido avançasse, curvando o busto e abaixando a cabeça para golpear a cintura do outro, Onça Preta inclinou-se para a frente, tentando evitá-lo. Na verdade apenas abriu uma brecha, por onde Querido entrou com a perna direita, mantendo a esquerda esticada rente ao chão para sustentá-lo, Onça Preta atirou frouxamente os braços para trás e caiu para a frente por cima da cabeça que ia atingi-lo, descrevendo um arco perfeito. Rindo calmamente, como num elogio, os dois se leventaram, gingando em círculos, para relaxar os músculos, enquanto a orquestra aplaudia:
Ê aquindérreis!
Ê Aruandê!
Que vai faze
Com capoeira?
Ele é mandingueiro
E sabe jogá…
Empenharam-se novamente em luta e de novo Querido foi o atacante, quase agachado como numa dança russa, oscilando, os braços curvados para a frente para equilibrar-se. Em vez de insister na cabeçada como antes, inclinou-se d elado e, de repente, ergueu o corpo. Onça Preta se curvou para atacar, mas Querido pôs todo o peso na perna direita e raspou a cabeça do adversário com a esquerda, fazendo-o cair mais uma vez esticado!
Agora outro capoeira insistia em entrar na roda. Já o tentara antes, mas não lhe tinham dado atenção. Impaciente, empurrou Onça Preta para trás, apontado, indignado, para o canto ondeos juízes marcavam a giz, no chão, os pontos que Onça Preta não soubera ganhar. E Onça Preta, amuado, lhe cedeu o lugar.
Querido, o herói, enxugou o suor do rosto e das costas e tirou o chapéu da cabeça para refrescá-la. Durante todo o tempo os espectadores se mantiveram quietos, apenas mexendo os pés para aliviar a posição e a excitação anterior. Daí a pouco os berimbaus choramingavam uma invocação para a nova rodada:
Quem te ensinou essa mandinga?
- Foi o nêgo de sinhá.
O nêgo custou dinheiro,
Dinheiro custou ganhá.
Cai, cai Catarina
Sarta de má, vem vê Dalina
Amanha é dia santo
Dia de Corpo-de-Deus
Quem tem roupa vain a missa,
Quem não tem faz como eu.
Cai, cai Catarina…
Para mim aquela era uma exibição incongruente e maravilhosa, para os outros era maravilhosa e interessante absorvente. Para eles estava certo. Mas os versos me levaram a conjecturas acerca de escravidão, rebeldia e escárnio e eu estava perplexa ante o estilo do espetáculo, que robava à capoeira o seu aguilhão original. A polícia suprimira o aguilhão e os negros tinham convertido o remanescente numa fantástica e pungent dança. As canções teriam ainda significação para o povo? Lembrariam as lutas que haviam inspirado ou apenas dramatizavam os homens negros, como o candomblé dramatizavam as mulheres negras? As camadas de espectadores estavam imóveis, de rostos impassíveis.
De novo o desafiante e o campeão começavam a correr com os joelhos dobrados, os braços pendendo molemente, Querido diveritindo-se com pequenos e complicados movimentos dos pés. De repente, um rapaz pulou no centro da arena sacudindo uma vasilha com dinheiro. Acabava de correr o chapéu recolhendo contribuições para os lutadores; e a orquestra, que manda no espetáculo, decidira que, em vez de repartir o dinheiro, devia deixá-lo no chão para que um novo par tentasse apanhá-lo com a boca, cada parceiro rechaçando o outro à moda da capoeira. O rapaz annuncio a decisão e colocou a vasilha no chão, enquanto os berimbaus zombavam:
Brincá com capoeira?
Ele é bicho farso…
E Querido ganhou! Mas, com o brio de um campeão, virou a vasilha no chão para começar a luta de novo:
Ora, pode vadiá!
Desta vez o recém-vindo ganhou. A turba dissolveu-se, inconfortável, sob o sol escaldente das duas horas…
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Agradecmos a Lauren pela ajuda com a tradução.
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