30.9.08

Cantos de guerra dos Nagoas & dos Guaiamuns

Este trecho vem do jornalzinho brasileiro “Capoeirando”, edição junho-julho-agosto de 1996:
A relíquia de um "canto de capoeira" do século passado

No Toque de Berimbau [a parte da revista dedicada à musica] o primeiro registro da musicalidade da capoeira do século XIX: um canto de desafio entre os dois grandes grupos de capoeira- os Nagoas e os Guaiamuns.

Os Guaiamuns cantavam:

Terezinha de Jesus
Abre a porta e apaga a luz
Quero ver morrer Nagoa
Na porta do Bom Jesus

Os Nagoas respondiam:

O castelo içou bandeira
São Francisco repicou
Gaiamum está reclamando
Manuel Preto já chegou

Essa letra faz parte de um canto de capoeira e foi registrada por Plácido de Abreu em sua obra Os Capoeiras*, em 1886, na cidade de Rio de Janeiro. Esse canto foi chamado de "toada" pelo autor e revela o conflito entre os grupos de capoeira no século XIX: os Gaiamuns e os Nagoas. Esses grupos encontravam-se dividos em diversas facções correspondentes às freguesias da cidade.

Atualmente, essa "toada" tem um grande valor histórico, por confirmar a presença do canto, nos conflitos, o nome dos grupos de capoeira e revelar a presença de Manoel Preto, enquanto um dos líderes dos Nagoas.

Interpretando essa "toada" podemos entender um pouco mais da cultura da capoeira na tradição das maltas do século XIX. Esse canto é o mais antigo, no que se refere a um registro datado da musicalidade na prática dos capoeira.

• ABREU, Plácido de. Os Capoeiras Rio de Janeiro. Tip. Escola Seraphim Alves de Brito 1886. p. 03
No seu livro Hidden History of Capoeira (A história escondida da capoeira), pesquisadora Maya Talmon-Chvacier ofrece mais idéias sobre estes cantos:
Documentos e illustrações do começo do século XIX mostram que instrumentos musicais eram tocados durante o jogo de capoeira, mas não existe uma descrição das músicas. Só no fim do século, vários autores falaram sobre as músicas relacionadas à capoeira. Abreu escreveu que antes que as maltas entravam em briga, se desafiavam com cantos como esta que os Guaiamus cantavam:

Terezinha de Jesus
Abre a porta e apaga a luz
Quero ver morrer Nagoa
Na porta do Bom Jesus

E seus rivais respondiam:

O castelo içou bandeira
São Francisco repicou
Guaiamu está reclamando
Manuel Preto já chegou

Manuel Preto era o nome de guerra do líder do grupo Santana e os inimigos tinham muito medo dele. Os Nagoas utilizavam imagens relacionadas ao seu mundo espiritual. A bandeira era usada para comunicar com o mundo dos mortes. Usavam bandeiras nos funerais. São Francisco, um santo católico, usou a batida do tambor para superar os Gaiamuns. Os africanos comparavam seus deuses aos santos católicos e rezavam à eles através dos santos. São Francisco era sincretizado com o orixá Orunmila, o grande deus de humanidade e o maior conselhor. Ele revela o futuro através do segredo de Ifa, o oráculo supremo. Ele é um grande curadeiro. Os tambores avisam contra o perigo iminente mas também comunicam com outros mundos e possuem poderes sobrenaturais que dão tanta força à Manuel Preto que “Guaiamu está reclamando”.

Os Guaiamus eram influenciados em maior parte pelo cristanidade, demostrado por seu canto de guerra e o uso dos nomes Therezinha e Jesus e as imagens “abra a porta e apaga a luz” que significa a idéia de apagar a vida dos Nagoas e abrir a porta ao céu para as almas deles. Músicas cantadas para desafiar um adversário são comuns na cultura ioruba no contexto de guerra. Eles têm muito poder psicólogico. Evocando a memória de vitórias anteriores, guerreiros poderosos, espiritus, e os ancestrais, os cantos eram usados para inspirar os lutadores e assustar os inimigos. Como a cultura ioruba tinha muito influencia sobre os escravos desde o meio do século XIX para cá, e os capoeiras eram associados com beligerância, podemos ver porquê o desafio ritual era ligado com a música no fim do século XIX. Essas músicas eram caracterizadas como “cantos de guerra”.
O jornalzinho e o livro são excellentes recursos, cheios de informações interessantes sobre a capoeira. Nos meses que vêm postaremos mais deles.

Nenhum comentário: